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Cão ou lobo?

Atualizado: 20 de jul. de 2020

Cão ou lobo? Carnívoro ou onívoro? Proteína ou carboidrato? São tantas perguntas, não é mesmo? Sabemos que os cães descendem dos lobos e pertencem à mesma espécie Canis lupus. Até que ponto, no entanto, as semelhanças entre essas duas subespécies são preservadas? Alguns dizem que o processo de domesticação teria provocado alterações genéticas nos cães, tornando-os mais adaptados para se alimentar de carboidratos. Outros entendem terem os cães preservados suas características e sua natureza carnívora. Diante desses diferentes posicionamentos, como saber qual a dieta biologicamente apropriada para os nossos amigos de quatro patas?

Em termos genéticos, os cães e os lobos chegam a apresentar 99,9% de semelhança em seu DNA. É senso comum que os cachorros são descendentes dos lobos. Porém, diversas características separam os cães, tais como os conhecemos hoje, dos lobos, como redução da agressividade, maior sociabilidade, entre outros aspectos morfológicos. Mas, e a alimentação? Teria o processo de domesticação interferido e alterado a própria fisiologia dos cachorros, tornando-os mais aptos a ingerir carboidratos?


A domesticação dos cães e a digestão de carboidrato

O DNA é responsável pela codificação genética de todas as espécies. Nele, estão os genes que fornecem as instruções para a fabricação de proteínas, as quais, por sua vez, são responsáveis por inúmeras funções no organismo. Cada gene pode codificar um número variado de proteínas. No que diz respeito à digestão de carboidratos, existe o gene denominado AMY2B, responsável pela produção da proteína amilase.

A digestão do carboidrato pressupõe várias etapas, as quais são diferentes entre as espécies. Nos humanos, ela começa na boca, com a mastigação e a ação da enzima amilase presente na saliva. Em cães e lobos, ela só inicia no intestino, pela atuação da amilase excretada pelo pâncreas – e, sim, é isso mesmo, cães e lobos não mastigam. Além da diferença relativa à presença de amilase na saliva, pesquisadores apontam que a quantidade de cópias de genes que codifica a amilase pancreática (AMY2B) em cães e lobos é diferente. Quanto maior o número de cópias, maior a expressão gênica, maior a atividade enzimática da amilase e maior a capacidade de digerir carboidrato.

Em um estudo realizado com 136 cachorros e 35 lobos por meio da técnica de PCR, constatou-se que os lobos apresentam apenas duas cópias do gene AMY2B que codifica a amilase, enquanto o número de cópias nos cães variou de quatro a 21 (Axelsson et al. 2013; Arendt et al. 2014). Posteriormente, em um estudo com 266 cães, verificou-se que o número de cópias de genes codificadores da amilase varia entre as diferentes raças caninas. Essa alteração pode estar relacionada ao tipo de alimentação que prevaleceu em determinadas regiões durante o longo processo de domesticação. Nesse sentido, cães de trenó, como os cães Greenland Sledge, e Samoiedas teriam apenas duas e três cópias desses genes respectivamente. Pastor alemão e Cocker Spaniel Inglês teriam apresentado de forma consistente mais de 10 cópias do gene responsável pela amilase pancreática (Arendt et al. 2014).

Em outro estudo envolvendo 392 canídeos (incluindo lobo, coiote, chacal e espécies selvagens da Austrália, como os dingos), os autores concluíram que, em geral, os cães apresentam 10 cópias de genes que codificam a amilase pancreática, enquanto lobos e cães selvagens apresentam apenas duas (Arendt et al, 2016). Mais uma vez, o número de cópias de AMY2B encontradas nos cães não foi homogêneo, sugerindo que o aumento de AMY2B não afetou os cães da mesma forma, atingindo populações diferentes (Gráfico 1) .


Gráfico 1. A expressão do gene AMY2B em diferentes raças de cachorro

Fonte: Arendt et al, 2016, adaptado.

Os autores explicam que os cães de regiões nórdicas teriam permanecido mais isolados e afastados do processo de desenvolvimento da agricultura e, portanto, suas dietas estariam mais restritas a proteínas. Constata-se, assim, que houve uma adaptação genética nos cães, mas a eficiência na digestão de carboidratos varia entre as diversas raças de cães.


A expressão da AMY2B em outras espécies

Até que ponto essa adaptabilidade ocorrida no processo evolutivo e na domesticação dos cães os tornou, de fato, aptos a se alimentar de carboidratos? Essa evolução genética tornaria os cães capazes de ter uma dieta rica em carboidratos e de se alimentar como os humanos? Essas perguntas não foram, infelizmente, respondidas pelos estudos acima. No entanto, uma análise comparativa da expressão gênica da AMY2B em diversas espécies nos permite concluir alguns aspectos importantes.

Ao recorrer à BLAST, uma base de dados que reconhece sequências proteicas, comparou-se o número de proteínas derivadas da AMY2B em algumas espécies, observou-se que o ser humano apresenta 35 proteínas para atuar na digestão de carboidratos. Os gatos (Felis catus) apresentam duas; os cães (Canis lupus familiaris), cinco; os cães selvagens (Canis lupus dingo), duas; e os porcos (Sus scrofa), 16 (BLAST/NCBI, 2019).

A produção de proteínas relacionadas a digestão de carboidratos é diferente nas diversas espécies. Os homens, muito mais adaptados para a digestão de carboidratos, são os que apresentam a maior quantidade dessas proteínas. Os porcos, espécies onívoras, também apresentam uma maior quantidade de proteínas relacionadas à digestão de carboidratos. No entanto, gatos e cães selvagens, espécies carnívoras, manifestam apenas duas proteínas.


Os cães, de fato, se adaptaram ao longo do processo de domesticação e possuem atualmente maior capacidade de digerir carboidratos. Mas, isso parece estar longe de significar que uma dieta rica em carboidratos seja adaptada à espécie. Vale ressaltar ainda a diferença adaptativa existente entre as diversas raças de cachorro. Alguns podem estar mais adaptados, mas o fato é que nenhum parece estar adaptado como nós.


Por fim, vale ainda questionar se a particularidade de cada espécie relativa à digestão dos carboidratos se reflete, atualmente, em suas dietas padrão. Segundo diretrizes nutricionais para os seres humanos, 50 a 60% das calorias devem ser provenientes de carboidratos. No caso dos lobos, pesquisas apontaram que, em sua dieta ancestral, apenas 6% das calorias provinham de carboidratos - desses, 3% correspondiam ao consumo de mel e 3%, a frutas e vegetais. Quanto aos cães, 50 a 60% da composição das rações secas disponíveis no mercado é de carboidrato, sendo que essa quantia fornece de 50 a 60% das calorias diárias.


Constata-se, assim, que, apesar da adaptação dos cães à maior ingestão de carboidrato, o atual consumo excessivo parece ser desproporcional em relação à alteração fisiológica verificada nos estudos. Ou seja, a pequena adaptação genética não justifica que a dieta dos cachorros tenha grande proporção de carboidratos. A dieta moderna do cão parece estar muito mais biologicamente apropriada ao humano do que à sua própria espécie.


Referências Bibliográficas

Axelsson E, Ratnakumar A, Arendt ML, Maqbool K, Webster MT, Perloski M. The genomic signature of dog domestication reveals adaptation to a starch-rich diet. Nature 495: 360–364, 2013.

Arendt, MJ; Axelsson, E., Fall, Tove. Amylase activity is associated with AMY2B copy numbers in dog: Implications for dog domestication, diet and diabetes. In, Animal Genetics, June 2014.

Arendt MJ, KM Cairns, JWO Ballard, P Savolainen, & E Axelsson. Diet adaptation in dog reflects spread of prehistoric agriculture. Heredity 2016: 1-6.

BLAST. National Center for Biotechnology Information. Disponível em https://blast.ncbi.nlm.nih.gov. Acesso 31/05/2019.

Brown, Steve. Unlocking the Canine Ancestral Diet: Healthier Dog Food the ABC Way. Dogwise Manual, 2010.

Carpenter, D; Dhar, S; Mitchell, L; Fu, B; Tyson, J; Shwan, N; Yang, F; Thomas, M; Armour, J. Obesity, starch digestion and amylase: association between copy number variants at human salivary (AMY1) and pancreatic (AMY2) amylase genes, Human Molecular Genetics, Volume 24, Issue 12, 15 June 2015, pages 3472–3480.

Patton, Richard S. Ruined by Excess, Perfected by Lack; The paradox of pet nutrition. DogsNaturally Publishing, 2 Ed, 2017.

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